Primavera

Fazia algum tempo que pensava naquilo e decidiu, naquela manhã de domingo, início de setembro, procurar as sacolas com as quinquilharias que trazia das viagens. Foram várias e algumas em lugares inusitados, pra dizer o mínimo. De todas elas, alguma lembrança. Poderia ser uma carteira de cigarrro – sim, houve esse tempo – ou então guardanapos com algo escrito, tampinhas de refri, balas de coca, moedas e cédulas para uma coleção que nunca existiu, mapas, tickets de metrô, conchas, postais e até pequenas pedras de lugares distantes que provavelmente não voltaria a visitar. A ideia era mandar fazer quadros e compor com fotos cuidadosamente escolhidas, misturando com os objetos daquela aventura. Olhou tudo aquilo e ficou feliz. Quanta vida ali diante dele. Infinitos momentos. Lembranças maravilhosas. Uma vida inteira como dizem. Uma vida bem vivida.
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A primavera se aproximava. Tempos mais coloridos pela frente? Pensou nas próximas viagens que faria e em todos os objetos que traria consigo. Manteria o ritual. E teve a certeza quando abriu todas as sacolas. Era o tempo na frente dele. Um tempo lindo pra caralho. Aquilo fazia parte dele. Talvez fosse o momento de construir os quadros. Talvez sem fotos, apenas com os objetos. Seriam relicários e contariam essa história toda.
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A primavera era um bom momento para mexer naquilo e pensar na próxima viagem.
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Dessa vez, sozinho.
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Lembrou Beto Guedes.
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“Sol de primavera
Abre as janelas do meu peito
A lição sabemos de cor
Só nos resta aprender”
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Calma

Comprou a tela e um carretel de linha vermelho e outro matizado, que variava do vermelho ao branco. Faria um bordado inspirado numa obra, um tipo de tapeçaria, que tinha visto com a frase Tudo Passa. Sabia que aquilo era verdade.
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Usou o vermelho puro para a frase e a linha matizada seria para o fundo, que fez como um hachurado. Enquanto a linha preenchia a tela, variando os tons, ele lembrou do pai que havia morrido tão cedo, lembrou da mãe que também não estava mais por aqui, lembrou da grande amiga que sabia mais dele do que ele mesmo e da dor da despedida, lembrou dos dois gatos que o acompanharam por 11 e 16 anos, e que exigiram dele uma prova de amor que nunca imaginou ter que provar.
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Seguiu bordando e sentia um gosto de vida vivida, de sentimentos que sacudiam-se dentro dele, mas que estavam acomodados. Era o amor que fazia com que aquelas lembranças não doessem mais, era a saudade do bem vivido, das lembranças boas. Tudo passa quando o Amor segue. Ele amava os pais, a amiga, os dois gatos. Amava ter amado todos eles e sabia que esse amor era recíproco. Ninguém tiraria isso dele.
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Mas algumas coisas ainda não tinham tido o tempo necessário para passar. E era esse tempo que novamente agia sobre ele. Seguiu bordando. Tudo bem. Precisaria de mais tempo para que pudesse dizer “Tudo passa”. Mas dizer mesmo, lá do fundo do coração e com aquela dose de amor que acomodam as coisas dentro do peito.
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Colocaria o bordado em algum lugar especial da casa e ele serviria como uma espécie de mantra. Repetiria com o coração cheio de amor. Era preciso deixar que o tempo também fizesse a sua parte. Era preciso respeitar esse tempo.
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Era preciso calma.
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