Receitas

Receitas

Na vida de solteiro o jantar sobra para o almoço e às vezes até para o próximo jantar. Jogar comida fora é algo impensável. E foi ao servir-se do strogonoff da noite anterior que olhou para o prato e a imagem que veio à lembrança foi a de um dos seus pratos favoritos: risoto. Veio também a constatação de que não era ele quem fazia o prato. Não tinha paciência para ficar na beira do fogão regando o arroz com o caldo de legumes. Que bela lembrança.

Eles gostavam de cozinhar e todo o ritual que isso envolvia. Trocavam as lidas do fogão e alguns pratos eram especialidades individuais. Na lembrança do risoto, olhando para o prato com o strogonoff, pensou que poderia ter aprendido a fazer, mas tinha aquele gosto especial de esperar, conversar, ser servido e elogiar sempre daquele jeito exagerado: “é o melhor risoto que tu já fizeste até hoje”.

Comeu devagar pra não misturar os gostos em sua cabeça. O strogonoff estava delicioso, mesmo sendo da noite anterior. Lembrou inclusive da noite anterior. Estava sozinho, curtindo cada momento da preparação do prato, escutando música e dançando com ele mesmo ou com a cachorra.

Da próxima vez tentaria fazer a receita do risoto que mais gostava e que viu tantas vezes ser feita: tomates secos e alho-poró acompanhado de um vinho tinto e de sua própria companhia.

Cozinhar é um gesto de amor e pode ser sobre amor próprio também.

Comer o Sol

Comer o Sol
Quindim era um dos seus doces favoritos e naquela manhã de sexta-feira, depois de uma reunião que o deixou muito feliz e empolgado, decidiu que era hora de um café. Com quindim.
Entrou na confeitaria Princesa – com mais de 60 anos de história – na subida da rua da praia. Lembrou de uma Porto Alegre que o acolheu e que ainda acolhe. De uma cidade onde construiu sua história, sua vida. Onde viveu e descobriu o verdadeiro Amor. Uma cidade que não andava tão alegre, mas isso, neste momento, não era o que ele queria pensar.
Quando o quindim chegou, ele olhou para o pequeno pratinho, retirou o peloti rosa, deixou apenas o plástico decorado, ajeito sobre o balcão e fez a foto.
Ele andava sentindo uma energia bonita nas últimas semanas e o mês de outubro estava mesmo iluminado com muitas coisas bacanas acontecendo.
Olhou novamente para o doce e pensou: é o Sol. Comeu com calma. Comeu o Sol. Sorriu e pensou que esses delírios e essa conexão real com a vida, esses pequenos momentos, são o que dão sentido à existência.
A partir de agora, pediria sempre um Sol para comer. Era isso!

Calma

Comprou a tela e um carretel de linha vermelho e outro matizado, que variava do vermelho ao branco. Faria um bordado inspirado numa obra, um tipo de tapeçaria, que tinha visto com a frase Tudo Passa. Sabia que aquilo era verdade.
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Usou o vermelho puro para a frase e a linha matizada seria para o fundo, que fez como um hachurado. Enquanto a linha preenchia a tela, variando os tons, ele lembrou do pai que havia morrido tão cedo, lembrou da mãe que também não estava mais por aqui, lembrou da grande amiga que sabia mais dele do que ele mesmo e da dor da despedida, lembrou dos dois gatos que o acompanharam por 11 e 16 anos, e que exigiram dele uma prova de amor que nunca imaginou ter que provar.
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Seguiu bordando e sentia um gosto de vida vivida, de sentimentos que sacudiam-se dentro dele, mas que estavam acomodados. Era o amor que fazia com que aquelas lembranças não doessem mais, era a saudade do bem vivido, das lembranças boas. Tudo passa quando o Amor segue. Ele amava os pais, a amiga, os dois gatos. Amava ter amado todos eles e sabia que esse amor era recíproco. Ninguém tiraria isso dele.
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Mas algumas coisas ainda não tinham tido o tempo necessário para passar. E era esse tempo que novamente agia sobre ele. Seguiu bordando. Tudo bem. Precisaria de mais tempo para que pudesse dizer “Tudo passa”. Mas dizer mesmo, lá do fundo do coração e com aquela dose de amor que acomodam as coisas dentro do peito.
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Colocaria o bordado em algum lugar especial da casa e ele serviria como uma espécie de mantra. Repetiria com o coração cheio de amor. Era preciso deixar que o tempo também fizesse a sua parte. Era preciso respeitar esse tempo.
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Era preciso calma.
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Primavera

Fazia algum tempo que pensava naquilo e decidiu, naquela manhã de domingo, início de setembro, procurar as sacolas com as quinquilharias que trazia das viagens. Foram várias e algumas em lugares inusitados, pra dizer o mínimo. De todas elas, alguma lembrança. Poderia ser uma carteira de cigarrro – sim, houve esse tempo – ou então guardanapos com algo escrito, tampinhas de refri, balas de coca, moedas e cédulas para uma coleção que nunca existiu, mapas, tickets de metrô, conchas, postais e até pequenas pedras de lugares distantes que provavelmente não voltaria a visitar. A ideia era mandar fazer quadros e compor com fotos cuidadosamente escolhidas, misturando com os objetos daquela aventura. Olhou tudo aquilo e ficou feliz. Quanta vida ali diante dele. Infinitos momentos. Lembranças maravilhosas. Uma vida inteira como dizem. Uma vida bem vivida.
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A primavera se aproximava. Tempos mais coloridos pela frente? Pensou nas próximas viagens que faria e em todos os objetos que traria consigo. Manteria o ritual. E teve a certeza quando abriu todas as sacolas. Era o tempo na frente dele. Um tempo lindo pra caralho. Aquilo fazia parte dele. Talvez fosse o momento de construir os quadros. Talvez sem fotos, apenas com os objetos. Seriam relicários e contariam essa história toda.
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A primavera era um bom momento para mexer naquilo e pensar na próxima viagem.
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Dessa vez, sozinho.
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Lembrou Beto Guedes.
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“Sol de primavera
Abre as janelas do meu peito
A lição sabemos de cor
Só nos resta aprender”
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